sexta-feira, abril 24, 2015

Jauja

Parte do conflito sobre o qual se apoia Jauja, filme do argentino Lisandro Alonso, se estabelece logo no primeiro plano. A janela escolhida pelo diretor, de formato quadrado e cantos arredondados, causa estranheza. Não apenas porque está em desuso, mas principalmente pelo modo como ela restringe a amplitude da paisagem, notadamente imensa.

Este formato – que remete ao início do cinema, às fotografias antigas e, para os mais jovens, às fotos no Instagram – será o limitador da vastidão que acompanha a narrativa e envolve os personagens. O conflito está na sensação de aprisionamento que esta janela impõe à paisagem, como se ali existisse uma permanente medição de forças entre a imensidão que quer extravasar o quadro e a determinação do quadro em contê-la.

Um embate que, de uma maneira diversa, também será vivenciado pelo engenheiro militar dinamarquês Gunnar Dinesen (Viggo Mortensen). Na Argentina do século 19, na desértica região da Patagônia, ele e sua filha de 15 anos, Ingeborg (Viilbjørk Malling Agger), iniciam o filme com um diálogo inocente. Falam sobre um cão que ele promete comprar para ela quando regressarem à Dinamarca.

Gunnar está incumbido de supervisionar uma escavação, mas isso só se saberá depois, quando sua filha já tiver sido levada. Antes disso, o embate entre o homem educado e a terra selvagem ganhará os primeiros contornos no contato com os outros homens do grupo. Um desconforto presente no modo como um deles corteja sua filha e no tom desumano com que se refere aos habitantes primitivos da região.

Os diálogos precisos no início ajudam a dar o tom de deslocamento que ocupará quase todo o restante da narrativa, quando o engenheiro inicia sua busca desesperada pela filha.

A terra inóspita, o deserto amplo, a perseguição obstinada, a selvageria aparente dos nativos e o homem civilizado em seu dólmã militar remetem imediatamente a um clássico do cinema: Rastros de Ódio (The Searchers, 1956), de John Ford, que mostra uma situação similar. Ambos trazem, sob perspectivas diferentes, uma representação do homem “branco” imiscuído em terras – e povos e culturas – estranhas, onde não são bem-vindos.

Lisandro, porém, não segue caminhos objetivos. Está mais interessado em outros níveis dessa relação entre conquistado e conquistador. Mas não de forma fácil.

O grande confronto do protagonista será com a paisagem, mais do que com a selvageria. Há ali uma beleza passivamente agressiva, de horizonte largo, sempre restringido pela tela. Em uma das mais belas cenas do filme, vemos Gunnar ser engolido pela noite e pelo céu de estrelas quando se deita sobre uma pedra. Ele é o elemento que será completamente absorvido pela imensidão do deserto, por tudo que ele tem de árido e também de onírico.

Não há exatamente um roteiro ou uma trama. Há apenas o homem e a natureza. O registro é quase documental, realista na forma, na fotografia e no modo de seguir o personagem. Mas nunca se aproxima o suficiente, nunca delineia seu caráter ou nuanças de seu perfil.

O que o filme constrói é menos uma narrativa e mais uma travessia em que as camadas do real se transformam, se subvertem, perdem seus contornos sem que o registro mude, sem que haja qualquer indicação de alternância do espaço-tempo. Isso só fica evidente em uma ruptura final, totalmente desconexa do que se via até então. Essa mudança traz dezenas de perguntas que abrem caminhos para múltiplas interpretações. Cabe ao espectador criar a sua.

Sair de um filme com dúvidas é algo que o massivo cinema comercial nos fez desaprender. A segurança de uma compreensão plena e mastigada da narrativa se transformou em uma satisfação de consumo. Jauja não vai atender a essa satisfação. Qualquer certeza que se crie que pode ser facilmente esmagada. Da mesma forma que o quadro do filme esmaga a paisagem e a paisagem esmaga seu intruso personagem.
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Jauja
Lisandro Alonso
Argentina/Dinamarca/França/México/EUA/Alemanha/Brasil/Holanda, 2014
109 min.


Trailer

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