quinta-feira, fevereiro 20, 2014

Ela

Em certa medida, é desconcertante notar o quanto a improvável história de Ela parece hoje menos improvável do que pareceria há dez ou 15 anos. Ou o quanto pode vir a parecer nada improvável em alguns anos.

Comédia, drama, romance ou ficção científica? Qualquer uma dessas pode servir. Mas é também filme-espelho, aquele tipo de filme que reflete o humor de um tempo. No seu exagero, Ela evidencia um pouco da vida moderna, cheia de solidão e de gente desesperada por sentir-se menos só. Alguns, se escondendo atrás da tecnologia.

Num futuro que pode estar perto, Joaquim Phoenix interpreta Theodore Twombly. Ele trabalha numa empresa que escreve cartas sentimentais para pessoas que querem encantar algum parente, amor ou amigo, mas não sabem escrever bem.

Se nosso poeta Drummond fosse descrever Theodore, talvez dissesse: o homem por trás do bigode é melancólico, simples e solitário. Pois além de introvertido e de ostentar um peculiar bigode, ele está se refazendo de uma separação.

Mas chega ao mercado um novo sistema operacional com inteligência artificial. Mais do que permitir acesso à máquina, esse sistema conversa, desenvolve habilidades sociais e apresenta interações sofisticadas com o usuário. Na instalação, escolhe-se entre “ele” ou “ela” para a interface. É assim que, ao escolher “ela”, surge Samantha, cuja voz é empresta de Scarlet Johansson.

Samantha vai conhecer melhor Theodore. Descobrir suas preferências, entender suas carências, compreender seu jeito de interagir. Dessa interação entre o homem e o sistema operacional “mulher”, das conversas que passam a ter, surge a paixão, correspondida imediatamente pelo outro.

É em torno desta relação que o filme desenvolve não apenas a ironia, mas também um relato tocante. Disso emergem diversas questões, como a do sentimento ser possível mesmo na artificialidade de uma inteligência artificial e, pior, sem corpo.

Ao desdobrar-se, o filme traz algumas questões até elementares sobre nosso tempo. Além da solidão, trata do fascínio que os dispositivos eletrônicos exercem sobre nós. Um fascínio que muitas vezes se aproxima de forma preocupante a certo tipo de relação – não tão complexa quanto a do filme, mas forte o suficiente para muitas vezes atrapalhar nossa interação com o mundo real.

Dizer que Ela é um filme profético seria tolice de futurologia. Mas certamente ele acentua traços perceptíveis nos dias de hoje. Porém, mais importante que as elementares conexões com nossos dias, são as propostas mais subjetivas que surgem e se colocam ao debate ao longo do filme.

Entra-se aí no campo da ética, do conceito de amor, da filosofia, da dúvida quanto à real necessidade do tangível, do corpo presente para que haja uma relação real. No debate, a própria “realidade” de uma relação, seus limites dentro do que é real, sua definição ampla ou restrita. Claro que nada em subníveis muito densos ou profundos, mas suficientemente instigantes.

Como se quisesse manter sempre em evidência o intangível de tudo que propõe, Jonze opta por certo minimalismo na concepção visual da vida de Theodore. A fotografia de tons pasteis, sem vibração, acentuam o melancólico do personagem, que se estende a seu tom de voz passivo e retraído.

Esta mesma melancolia e solidão afeta sua amiga – e também ex-namorada do passado – Amy, vivida por Amy Adams. Uma amizade que cria paralelos com a questão da proximidade distante, outro aspecto desses tempos em que certo individualismo deixa o outro translúcido para nossos olhos, sempre focados em nós mesmos.

O diretor Spike Jonze costuma se dedicar mais a vídeos, vídeos documentários e curtas-metragens do que ao cinema de longa metragem. Mas suas incursões no cinema são sempre bem recebidas. No início, foi um pouco ofuscado pelos roteiros brilhantes e inusitados do roteirista Charlie Kaufman, como nos ótimos filmes Quero Ser John Malkovich (1999) e Adaptação (2002). Voltou em 2009 com uma também elogiada adaptação do clássico infantil Onde Vivem os Monstros.

Agora, em Ela, ele mesmo assina o roteiro e mostra versatilidade também nisso, mantendo na direção o mesmo trabalho sensível de seus filmes anteriores. Reforça também o gosto por histórias inusitadas, por tornar o absurdo razoável e através dele desvendar um pouco do ser humano.

Com uma atuação excelente de Joaquim Phoenix e uma grande versatilidade de Scarlet Johansson no uso da voz, Ela propõe, no fundo, uma história de amor como tantas outras, nascida da solidão, da carência afetiva e da confusão de sentimentos sobre nós mesmos. Acrescenta apenas aspectos do nosso tempo, e ao fazê-lo amplia seus significados, o que resulta num filme inteligente e tocante.
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Her
Spike Jonze
EUA, 2013
126 min.

Trailer

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