sábado, dezembro 07, 2013

O Ato de Matar

Pode ser difícil de acreditar, mas os personagens de O Ato de Matar são reais. Embora fique sempre claro se trata de um documentário, esta é uma obviedade que precisa ser lembrada. Um reforço que se justifica pelo choque do terrível que o filme constrói, a ponto de nos fazer duvidar.

Isso acontece porque no seu mecanismo se trabalha o “real” em um patamar distinto da normalidade. Seus personagens, ao representarem para a câmera a reconstituição de atos que eles mesmos executaram, tonam-se reais em uma dimensão incomum: são o artifício da figuração, mas também são a verdade factual dentro dessa figuração. Pois é neste jogo de significados que habita o horror que nos surpreende.

Na Indonésia, em 1965, os militares assumiram o poder após um golpe de estado. O motivo do golpe, apoiado por países ocidentais, seria barrar o avanço do comunismo. Segundo informa o documentário, a partir de então, qualquer opositor ao regime poderia ser acusado de ser comunista e morto por isso. Em menos de um ano, milhares desses “comunistas” foram assassinados por grupos paramilitares, sob a anuência do governo.

Alguns dos executores que faziam parte desses grupos ganharam status de heróis nacionais e seguem ligados ao poder até hoje. São como celebridades. Têm orgulho de seus feitos de morte e seus métodos de tortura. Contam – e gostam de contar – os mecanismos de execução que utilizavam.

Foi diante desse orgulho assassínio que o diretor norte-americano Joshua Oppenheimer propôs a esses homens uma representação do real: que reconstituíssem, do modo como quisessem, algumas de suas histórias em frente à câmera. Esse é o dispositivo de O Ato de Matar.

Ao criar esse arranjo formal e improvisado de reconstituição, em que o sujeito representa o próprio sujeito, o filme se insere em uma vertente do documentário conhecida como filme-dispositivo. Nesse tipo de filme, as relações do que é mostrado ganham contornos subjetivos por meio de dispositivos específicos.

Filmes como Super Size Me, de Morgan Spurlock, no qual o diretor se propõe a passar 30 dias se alimentando exclusivamente no McDonald’s e registrar os efeitos nocivos dessa dieta; ou Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho, no qual o diretor convida mulheres para contarem suas histórias de vida e embaralha relatos autênticos e representados para discutir os limites entre documento e ficção, são alguns exemplos de filmes-dispositivos.

Em O Ato de Matar, o dispositivo acaba por revelar o absurdo e nos levar ao desconcerto. O que se vê na tela são homens sorridentes e brincalhões. Falam e representam seus assassinatos com a espontaneidade que ultrapassa o orgulho, mergulha no banal e revela uma assustadora ausência de culpa ou noção de gravidade.

Revelam ainda uma perturbadora influência do cinema de Hollywood em seus atos e na banalidade de toda violência que impuseram a suas vítimas.

Para aumentar o desconcerto, o diretor acrescenta a seu dispositivo representativo toques surreais. Bastidores de videoclipes em que os assassinos são as estrelas compõem o horror bizarro que o filme constitui com uma força que confronta a lógica comum para ressaltar a lógica desse mal. Uma lógica menos incomum do que gostaríamos.

Nesse processo, o diretor Oppenheimer pouco interfere. Não aplica, contudo, o distanciamento formal. Sustenta uma posição em que, através de poucos estímulos, permite revelar para o público o absurdo proposto, totalmente encampado pelos personagens. Assim, obtém uma naturalidade na qual seus personagens se deixam desdobrar espontaneamente, aprofundam-se no surreal que representam (e são) e revelam sua indiferença ante o horror da tortura e da morte.

Na articulação desse dispositivo, O Ato de Matar traz à tona uma assustadora disposição humana em banalizar o mal quando o pratica. Mas aqui não se trata das inferências que a filósofa Hannah Arendt traçou ao dissecar o nazismo e o mal banalizado por ele. O patamar aqui é diferente, e mesmo o sadismo – uma simplificação sempre pronta a entrar em discussões desse tipo – ganha contornos distintos e perturbadores.

O Ato de Matar, como documentário e dispositivo, atinge um patamar de significações ricas. É alimento farto para quem quer debater aspectos formais e intrínsecos como jogo de espelhos, sujeito significante ou o significado do sujeito. Mas à parte formalismos acadêmicos, o filme é um retrato de dimensões múltiplas sobre a natureza do mal na natureza humana. Nesse aspecto, funciona de forma simples, direta e perturbadora. A ponto de nos fazer (querer) duvidar de que o que se vê representado seja, ou tenha sido, alguma vez realidade.
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The Act of Killing
Joshua Oppenheimer
Dinamarca/Noruega/Reino Unido, 2012
115 min.

Trailer

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