quarta-feira, março 06, 2013

A Parte dos Anjos

Durante o processo de envelhecimento do uísque em barris de carvalho, cerca de 2% de seu conteúdo evapora-se. Essa é a parte dos anjos, brincam os especialistas em bebidas destiladas. Mas nesta comédia de Ken Loach, a parte dos anjos ganha outras conotações, tanto no que tange ao uísque quanto às pessoas.

Na cidade britânica de Glasgow, um grupo de delinquentes é condenado a prestar serviços comunitários. São jovens desajustados; ladrões, beberrões e briguentos que orbitam a periferia entre drogas, álcool e pequenos crimes. Entre eles, um jovem esquentado prestes a ser pai e perseguido por uma gang violenta. Ao escapar por pouco de uma condenação de prisão, ele vê a chance de mudar de vida, junto da namorada e do filho que está por nascer.

Autor de um cinema que frequentemente enfoca classes baixas da sociedade britânica, Ken Loach cria, como já havia feito em À Procura de Eric (2009), uma trama engendrada de forma a exibir o cerco difícil de escapar quando não se tem oportunidades. Um círculo de violência e marginalização que passa de geração para geração.

Em A Parte dos Anjos, Loach revela esse círculo vicioso pelo tom da comédia, mas sem esquecer o peso do drama. Para o diretor, a chave para sair desse ciclo hereditário está na oportunidade oferecida, que no filme é personificada pelo supervisor do grupo de serviços comunitário, o simpático Harry (John Henshaw).

A mudança que Harry provocará na vida desses jovens não virá de nenhum grande esforço dramático de altruísmo. Surge tão somente de um simples gesto de confiança e respeito, algo que esses jovens raramente recebem. Sem nada de exagerado, fica tudo na simplicidade de uma mão estendida e uma eventual dose de uísque para celebrar. É que Harry é um apreciador do destilado e costuma frequentar destilarias para visitas de degustação.

Ao levar o grupo de jovens para uma dessas visitas, se descobrirá em um deles o inesperado talento para a degustação, graças a um surpreendente e sofisticado conjunto de olfato e paladar. Mas como talento não basta para romper o ciclo de marginalidade, entra em ação um plano mirabolante para tentarem recompor suas vidas em um novo começo.

Através dessa ação entre amigos, Loach destilará sutilmente sua ironia e crítica social. Um grupo de jovens à margem e sem cultura que vai expor, mesmo sem dar por isso, o ridículo de uma sociedade entronizada em ritos elitistas.

No cerne dessa ação há uma revanche irônica que revela a tolice e o vazio que há na valorização desmesurada daquilo que é supérfluo. Com uma graça desembaraçada de qualquer pedantismo, o filme aponta seu dedo para uma elite hedonista, mostrando o quanto o rei está nu.

Divertido, simples e sem embaraços artificiais, A Parte dos Anjos tem na sua ingenuidade otimista uma beleza própria. É filme cuja trama flui naturalmente, mostrando um roteiro livre de esquematizações e cujo desfecho até surpreende pelo que tem de descomplicado e simpático.

Nas suas entrelinhas, a história não diz respeito apenas ao uísque que se evapora como a parte que cabe aos anjos. Diz também da parte que deveria caber a todos em uma sociedade, mas que nem sempre é partilhada de forma justa ou honesta. É para reivindicar a parte que lhes cabe que os anjos renegados de Loach existem.
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Ken Loach
Reino Unido/França/Bélgica/Itália, 2012
101 min.

Trailer

1 comentários:

Sara disse...
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