terça-feira, dezembro 03, 2013

Morro dos Prazeres

Há no documentário Morro dos Prazeres algumas transições em que se contempla, do alto do morro que dá nome ao filme, a paisagem do Rio de Janeiro. A vista muda de acordo com a face do morro de onde é vista, mas o princípio é o mesmo: a câmera que contempla a cidade (e o mundo) “lá embaixo”.

Essas transições são um respiro e também uma carta de princípios. Um tempo para pensar a respeito do que a câmera acabou de mostrar “ali em cima” e uma reafirmação de que esta mesma câmera está lá apenas para mostrar, sem juízo de valor. Por entre becos, escadas, vielas, casas pobres e a unidade de polícia pacificadora, o princípio é muito claro: reproduzir sem filtros ou intervenções uma realidade cuja complexidade se revela por si própria.

O filme é uma incursão da diretora Maria Augusta Ramos no cotidiano da comunidade do Morro dos Prazeres e no cotidiano da força policial pacificadora que o ocupa desde 2011. Vê-se, a partir desta incursão, como brota naturalmente na tela a relação de forças e tensões entre a população e a presença policial. É este o objeto de observação do filme, que serve para construir de forma menos simplista a realidade da questão das UPPs no Rio de Janeiro.

Não se trata, porém, de uma imersão. O olhar do filme mantém sempre um distanciamento que busca uma imparcialidade objetiva. Retrata ambos os lados, de moradores e policiais. Daí que Morro dos Prazeres quer ser um estímulo para a discussão sobre a ação policial e as relações de tensão com a comunidade, mas sem emitir opinião. Deixa-se, assim, na conta do espectador qualquer conclusão ou inferência a partir do que se vê e ouve.

O princípio funciona bem. Mas se por um lado essa imparcialidade oferece a chance de uma visão crítica livre de artifícios indutores, por outro lado corre o risco do empobrecendo do registro, que pela ausência de articulações pode soar como um enfileiramento de situações.

Não é. Vê-lo dessa fora seria um simplismo preguiçoso, uma covardia do espectador que recusa o ônus de pensar e concluir por si próprio. No entanto, essa ausência calculada de articulação enfraquece, inevitavelmente, a riqueza de sentidos e relações profundas expressas nos discursos dos moradores e dos policiais.
Revelam-se, nestes discursos, raízes profundas de ressentimentos, obliquidades e barreiras que se aproximam do intransponível. Há largo material ali, solto no registro, prato cheio para articulações mais elaboradas. Mas resistir a isso é também mérito do filme.

Maria Augusta Ramos não cede à tentação e se atém ao registro cru, de planos e enquadramentos com pouca margem para subjetividade, embora nunca tão distantes que pareçam desinteressados. Há nisso uma harmonia entre um registro frio e uma aproximação humana, um equilíbrio afinado sem interferência, mas também sem a frieza mecânica de quem não se importa.

Morro dos Prazeres torna-se, de qualquer forma, um filme importante de ser visto. Importante para que se possa de forma menos superficial vivenciar através da tela o caldeirão que ferve em fogo brando – tanto na superfície quanto no profundo – com as relações conflituosas que surgem quando há a presença do Estado onde o Estado sempre foi pouco presente.

A realidade complexa que o filme exibe fica bem acima (e bem mais dentro) do que a visão midiática e/ou governista da questão da pacificação nos morros cariocas. Isso porque, se por um lado o olhar do filme busca um distanciamento que se arrisca na desarticulação, não deixa nunca de ser um olhar mais verdadeiro e próximo daquilo que é a realidade.

Sem filtros da mídia, sem filtros de nossos preconceitos, sem filtros até mesmo da articulação que o filme dispensa e que muitas vezes poderia ser mais filtro do que qualquer outra coisa.

Filmado muito antes do caso Amarildo, Morro do Prazeres não é um prenúncio da tragédia, é apenas a constatação das coisas e do estado das coisas. Em tempos de mimetismos superficiais e indutores, de simplismos covardes e apatia documental, seu registro desarticulado pode articular mais questões do que aparenta sua distanciada contemplação.
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Morro dos Prazeres
Maria Augusta Ramos
Holanda/Brasil, 2013
90 min.

Trailer

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