segunda-feira, novembro 29, 2010

5 x Favela - Agora Por Nós Mesmos

Antes por Outros

Talvez o impulso inicial inevitável ao se ver 5 X Favela – Agora por Nós Mesmos seja o de comparação com o Cinco Vezes Favela, de 1962. Porém, mesmo sendo o filme de hoje uma conseqüência direta do filme de 33 anos atrás, não creio que caibam comparações. Ainda que sejam projetos similares, apresentam-se díspares não apenas pelo tempo que os separa, não apenas pela ótica que os distingui, mas principalmente pela vocação de cada um. O primeiro se pretendia revolucionário, guardadas certas proporções com a acepção do termo. O segundo é apenas um exercício complementar.

É notável e impossível de desprezar o que foi o primeiro filme em sua gênese inaugural: a subida ao morro, a ida à favela de uma classe média-alta intelectualizada na busca por um Brasil verdade, ou ao menos mais real; a mostração da vida e do verdadeiro “real”, tão à margem da imagem que se via no cinema e na TV de então.

O ineditismo da intenção já valeria um estudo, mas há ainda o resultado dela. Um filme que tentava, dentro dos princípios cinemanovistas que já brotavam em alguns filmes daquele ano, expor um Brasil verdade sem abrir mão da ficcionalização dessa verdade enquanto narrativa. O que se viu foi um filme histórico na sua estética e na sua temática. Um flerte com o revolucionário, uma intenção clara de mudar a realidade através do cinema, através da imagem: fazendo dela um espelho.

O singular dessa tentativa de quebra de um paradigma está na problematização que sua gênese trazia em si mesma. Esta problematização estava no fato de que o que se viu na tela foi a visão da elite de dentro do morro – e nisso entra toda bagagem cultural de preconceitos arraigados por séculos de patriarcalismo colonial. Estavam dentro, mas viviam fora. E isso fazia toda diferença.

E faz mais diferença ainda o “agora por nos mesmos” do título do novo filme. Recado claro de que a perspectiva agora se pretende muito mais autêntica e intrínseca. E sendo o projeto desse novo filme todo orientado por um dos diretores do primeiro filme, Cacá Diegues, fica também a impressão de sutil auto-crítica em relação ao original, uma forma de reconhecer as limitações do projeto passado.

E toda essa carga historiográfica não poderia passar em branco no esforço dos novos e iniciantes realizadores, como na expectativa de uma parte do público atenta a esses detalhes.

Mas não creio que o desapontamento que me causou o resultado final do “agora por nós mesmos” seja culpa dessa grande expectativa. Pois a comparação, ainda que natural, não cabe como modelo, não tem base que a sustente, dadas as já citadas diferenças de tempo, espaço e realidade. Seja em termos de cinema, seja em termos de agravamento da problemática social.


Agora por Nós Mesmos

5 x Favela – Agora por Nós Mesmos peca em seus episódios pela superficialidade e pelo amistoso. Para um filme que carrega a carga de seu antecessor enquanto proposta inovadora, sua construção se mostra tacanha e convencional. Em alguns momentos chega até a ensaiar uma abordagem intensa, mas retrocede no meio do caminho e fica por isso mesmo.

De caráter episódico, como no antecessor, cinco histórias, escritas e dirigidas por diferentes núcleos de oficinas realizadas em comunidades carentes, embora com a colaboração de todos pelo projeto maior, se revezam na tela. Com a orientação e suporte de Cacá Diegues, cada um teve a liberdade de fazer seu próprio filme, de contar a história que queria. À disposição desses grupos estava um aparato profissional e técnico de ponta. Como o próprio Diegues disse em uma entrevista, o objetivo era que esses grupos de jovens cineastas pudessem dispor dos mesmos recursos que os diretores profissionais.

No primeiro episódio (Fonte de Renda) há um promissor conflito de princípios. Um jovem da comunidade passa na faculdade de direito e a alegria para quem vem de família tão pobre é imensa. Mas, com o decorrer do tempo as dificuldades vão se mostrando das mais mesquinhas e coisas como não ter o dinheiro para a condução até a faculdade minam o entusiasmo de qualquer um. A saída surge de um desvio motivado pelo desespero e falta de opções, quando ele passa a fornecer droga para um amigo da faculdade. De caráter reto e princípios rígidos, forjados por uma educação humilde e honesta, seu desvio se torna o prenúncio da tragédia que inevitavelmente se avizinha. Contudo, o desfecho se perde numa simplificação de superação que esvazia o conflito e não o explora em seu potencial.

O segundo segmento (Arroz e Feijão) retrata um garoto que quer dar de presente ao pai aniversariante um frango no jantar, cansados que estão de comer apenas arroz com feijão. As peripécias dele e seu amigo para conseguirem 5 reais para comprar um frango representam o esforço da superação da pobreza, as dificuldades e barreiras que a sociedade impõe aos mazelados. Nessa catarse de obstáculos sucessivos resta o último recurso, quando as tentativas retas de princípio e caráter se mostram frustrantes. Este é o episódio mais engraçado e por isso, por trazer embutido no humor uma dura realidade de fome, consegue ser um dos melhores. A solução do nó a ser desatado no final do episódio é não apenas original, como engraçadíssima.

O terceiro episódio (Concerto para Violino) é o mais violento de todos. Na verdade é o único onde a violência explícita tem espaço. Serve como contraponto dos demais episódios e não por acaso fica no meio do filme. O episódio busca estabelecer uma relação de amizade entre três jovens que passaram a infância juntos e que na vida adulta seguiram rumos distintos. Entre o policial disposto a tudo para cumprir sua missão e o bandido que se vê acuado, fica o terceiro elemento de um triângulo de amizade e amor.

Como construção de um relacionamento perdido entre os três personagens Concerto para Violino funciona mal. As cenas da infância são contaminadas por um artificialismo difícil de engolir. No plano do tempo real, falta a mesma liga entre os personagens, justamente por não se ter construído uma empatia crível de suas vidas em comum dispersada pelo tempo. É um final pessimista, com um gesto de piedade, mas sem arrependimento. Funciona como disparo seco que fecha a ilustração de como a vida pode nos levar a lados opostos e ambos estarem errados. Perde pela construção precária das relações entre os personagens.

O quarto episódio (Deixa Voar) é o mais fraco de todos. Um córrego separa duas comunidades aparentemente rivais e a ponte que o atravessa é a fronteira proibida. Uma pipa vai parar do outro lado e o responsável pela perda é obrigado a transpor o córrego para recuperá-la. Uma aventura cujo perigo iminente, criado pela expectativa e pelo receio, parece imenso. O problema desse episódio está no aparente perigo versus a banalidade da motivação em arriscar-se. Uma pipa é muito pouco. Mesmo assim, diante da pressão, o garoto vai. E ao chegar ao outro lado uma surpresa. Mas não tão grande a ponto de salvar o episódio de uma certa banalidade. Serve, no entanto, como mostra de que mesmo comunidades com iguais condições precárias se rivalizam belicamente.

O filme só vem a funcionar plenamente no último episódio (Acende a Luz) e justamente num tipo de abordagem dificílima de ser construída. Neste episódio não há terror, não há violência, nem tampouco sofrimento. Falta luz na comunidade na véspera de natal. Um funcionário da companhia de energia tenta resolver o problema antes que a noite caia. Sente-se ameaçado, pois não é da comunidade.

Aqui temos uma bela construção do sentido de comunidade. Essa construção competente se dá pelo andamento da narrativa, pelos personagens que transitam na história, pelos diálogos, pelo sentido de vizinho, exaltado por uma camaradagem alegre, que encara as dificuldades com humor e simpatia. É neste episódio que se dá um tom de confraternização, não apenas pelo natal, mas pela comunidade em si. É a irmanação pelos problemas comuns, a ajuda mútua, a divisão do pão num amplo aspecto de fraternidade. Se o termo “comunidade” perdeu seu sentido intrínseco para se tornar apenas um eufemismo de favela amparado na praga cínica do politicamente correto, aqui ele se restitui de sua real significação.

Neste epílogo de um quase final feliz, o mérito de um efeito tão bem construído está no ritmo, no timing correto da montagem e no “conflito amistoso”, por assim dizer, entre a comunidade e o funcionário da companhia elétrica. Se num primeiro momento ele é hostilizado como representante de um poder público que pouca importância dá à qualidade do serviço prestado a uma comunidade carente, logo se humaniza na figura de um igual entre eles. É essa humanização e empatia comum que ressalta um espírito perdido no imaginário e na acepção correta do termo comunidade.

Se na sua construção e desfecho o episódio está mais no plano do ideal e da utopia humana do que da realidade, por outro lado não deixa de ser um fiel representante de um verdadeiro espírito que existe nas vizinhanças e na vida cotidiana de bairros de periferia.

Por fim, 5 x Favela – Agora por Nós Mesmos, na soma de seus episódios, assume um tom decididamente brando, com um final, também não por acaso, ameno. Se por um lado não explora a violência e a miséria na chave de um denuncismo pueril, sem nuances e muitas vezes estéril, tampouco consegue dar profundidade e dimensão aos personagens. O olhar de dentro do “agora por nós mesmos” não chega a se mostrar revelador de uma visão particular, ainda que tenha alguns momentos muito felizes, como na construção do último episódio. Como cinema não ousa, mas consegue ser correto e digno em toda sua extensão, mérito de empenho dos realizadores não-profissionais e, certamente, da mais que credenciada assessoria que receberam de Diegues.

Vale, enfim, como iniciativa de um projeto salutar, de boa intenção, que trabalha na formação de uma nova geração de cinema. E por isso só já é uma grande razão para existir. Se dentro de uma análise fílmica deixa a desejar, com e sem a carga historiográfica que carrega por natureza, não é de se desprezar a correção técnica com que foi realizado. No fim das contas, entre soma e descontos, o saldo até que é bem positivo.
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